Não foi à toa que as mães solteiras ganharam visibilidade inédita nos últimos anos. Desde meados da década de 1950, o número de mulheres que criam seus filhos sozinhas só fez crescer no mundo. Na Grã-Bretanha, as famílias compostas por mulheres e seus filhos eram 1% de todas em 1971; em 2004, a porcentagem havia saltado para 11%. Nos Estados Unidos, os filhos de mães solteiras eram 4% de todos os nascidos em 1950; hoje, são mais de 30%. Em 2004, 25% das mulheres de 25 a 39 anos que tiveram filhos no país não eram casadas, e houve um recorde de nascimentos de filhos de mães solteiras: quase 1.5 milhões. Em 1970, três milhões de americanas criavam seus filhos sozinhas; hoje, elas são cerca de oito milhões.
A tendência não é privilégio dos dois países. Na França, desde o fim da década de 70, houve um aumento de mais de 50% no número de famílias uniparentais, das quais a maioria é chefiada por mulheres. Na Grécia, desde 1980, o número de mães solteiras aumentou 29,8%. Na Austrália, quase 25% das crianças vive hoje com apenas um dos pais, e estima-se que as famílias uniparentais crescerão, até 2020, mais 50%. No Brasil, o Perfil das Mães Brasileiras da Fundação Getúlio Vargas mostrou um crescimento exponencial na porcentagem de mães solteiras: de 2,73%, em 1970, para 16,37%, em 2000.
O que significam estes números? Com certeza, eles refletem quadros socioeconômicos complexos, que dizem respeito ao conjunto das populações, e não apenas às suas camadas mais privilegiadas. Nas classe mais pobres, o crescimento das famílias sem pai está relacionado a uma mazela social conhecida: a tendência masculina ao abandono da prole. Fundamento da desestruturação familiar que flagela as comunidades à beira da linha da miséria, esse abandono é comum no Brasil: só uma em cada três crianças que nascem aqui têm o nome do pai em sua certidão de nascimento.
Mas alguns dados sugerem que há outros fatores por trás do crescimento recente das famílias chefiadas por mulheres solteiras. Até meados do século 20, mulheres divorciadas ou viúvas eram maioria entre as mães solteiras. Hoje, a maior parte das mulheres que criam seus filhos sozinhas nunca se casou. Mais: principalmente nos países desenvolvidos, os dados mostram que as mães solteiras não estão só nas camadas mais pobres, como sempre estiveram, mas também na classe média, e até acima dela.
Essas particularidades sugerem que, ao lado do agravamento de um problema social, o crescimento do número de mães solteiras pode indicar uma mudança de comportamento, que se reflete numa transformação dos padrões familiares tradicionais. Com a entrada das mulheres no mercado de trabalho, o casamento deixa de ser o único caminho para a segurança financeira. Mais do que isso, deixa de ser prioridade: é cada vez mais comum que as mulheres adiem o casamento para um estágio posterior à conquista de um “lugar ao Sol” no mundo do trabalho. O movimento faz com que muitas tenham dificuldade para estabelecer um vínculo confiável com um homem de quem gostem no auge de sua vida fértil, ou seja, até cerca de 35 anos.
A conquista de independência financeira deu às mulheres autonomia inédita, inclusive sobre como dispor do próprio corpo e da própria sexualidade. Não por acaso, o ideal romântico do casamento, tido desde sempre como solução final para a busca da felicidade pessoal, atravessa uma crise. Donas de seus destinos, vivendo em uma sociedade que pouco a pouco se abre para novos tipos de composição familiar – como os núcleos formados por casais homossexuais, as mulheres começaram a questionar o vínculo que amarrava o desejo da maternidade à necessidade de estabelecer uma relação conjugal com um homem.
Ao oferecer uma possibilidade de reprodução que prescinde de um parceiro, as técnicas de reprodução assistida surgiram como uma resposta para esses anseios, potencializando o fenômeno. Da classe média às camadas socioeconômicas mais privilegiadas, mais e mais mulheres optam hoje pela “produção independente” para ser mães.
Talvez seja impossível enxergá-las nos números que tratam de fenômenos populacionais. Mas, no mundo real, elas estão em toda parte, inclusive nas notícias. As mães “independentes” ou “solteiras por escolha” – aquelas que optaram conscientemente por se tornar mães sem estar casadas ou envolvidas em uma relação duradoura com um homem – são a categoria de mãe solteira que mais cresce nos países desenvolvidos. Elas têm um perfil característico: com mais de 30 anos e educação superior, são bem-sucedidas profissionalmente e gozam de independência financeira.
À parte a pressão hormonal pela maternidade – o tal “relógio biológico” que dispara em torno dos 35 anos –, os motivos que as levam a optar pela maternidade sem marido são vários. Há as que prefeririam estar numa relação duradoura, mas, por alguma razão, não encontraram um homem para compartilhar o desejo de construir uma família – e/ou estão em relações que não evoluem nessa direção. Para essas mulheres, optar pela “produção independente” equivale a decidir que ser mãe é mais importante, necessário ou urgente do que buscar uma relação de qualidade com um homem.
Outras mulheres, mesmo envolvidas com homens, não sentem que os parceiros poderiam ser bons pais – e preferem ter filhos fora do contexto da relação com eles. E também são numerosas aquelas que, ao chegar perto dos 40 anos, já têm uma vida estruturada em torno do trabalho, da família ou dos amigos, e não se sentem dispostas a dividir a vida com um homem só para ter um filho. Com instinto materno forte, elas sentem-se prontas para a maternidade – mas não necessariamente para o casamento.
Seja qual for o motivo que as levou a escolher ter filhos fora do casamento, uma característica observada com freqüência nas mulheres que partem para a inseminação artificial para ter filhos é o grau de consciência que embasa sua opção. Também é comum que contem com o apoio da família, o que médicos e psicólogos consideram imprescindível nesses casos.
Mulheres com escolaridade superior e renda estável, mais velhas que a média das mães e bem informadas sobre como criar uma criança. Assim são as 30 chefes de família que a psicóloga e professora americana Peggy Drexler, da Universidade de Cornell, Nova York, entrevistou para a pesquisa que embasa seu livro Raising Boys Without Men (Criando Meninos Sem Homens). No estudo, Drexler compara filhos de mulheres que decidiram formar uma família sem marido com meninos nascidos de casamentos tradicionais. A conclusão: a figura do pai não é imprescindível para o desenvolvimento moral dos meninos e o falta de convívio regular com o pai não impede que constituam sua virilidade.
Mais do que a ausência de algum traço fundamental de masculinidade, a psicóloga detectou, nos filhos de mães independentes, uma combinação de assertividade e solidariedade mais saudável do que a apresentada pelos filhos de famílias convencionais. Para Drexler, a julgar pelas mães do estudo, as mulheres que optam por começar uma família sem um marido estão criando um tipo de homem diferente, ao mesmo tempo forte e sensível, capaz de entender o valor da emoção, além de independente.
Um sucesso nos Estados Unidos, Raising Boys Without Men alerta contra a “divinização” da família tradicional, modelo que já não corresponde a mais do que 23% dos lares do país. “O que conta é a qualidade da criação dos filhos, não o número ou o sexo dos pais”, diz a psicóloga. “Os homens são muito importantes para os meninos, mas os que não os encontram em casa podem descobri-los na sociedade. Nenhuma família pode oferecer todos os modelos.”O papel masculino pode ser exercido por amigos, tios, professores e por outros homens que façam parte o convívio do menino.
Procedimento médico simples, que oferece riscos reduzidos de infecção para mãe e bebê (por hepatite, HIV etc) e não dá margem a nenhuma discussão legal sobre a filiação, a inseminação artificial com esperma de doador é uma das modalidades de reprodução assistida mais utilizadas pelas mulheres que querem ter filhos sozinhas. E não é de hoje: em 1998, há quase dez anos, uma mãe solteira por opção que engravidava usando inseminação artificial e esperma doado tornava-se personagem de uma série de televisão americana. Inspirada na história real de sua produtora-executiva, Susan Beavers, Oh Baby contava a saga de uma bem-sucedida executiva de uma empresa de software que, aos 35 anos, desistia de convencer o namorado a assumir o compromisso de ter um filho com ela e partia para a inseminação, atendendo ao chamado barulhento de seu próprio relógio biológico.
Diferentemente do que acontece em relação à cessão temporária de útero permitida para os gays nos EUA e vetada pelo Conselho Federal de Medicina no Brasil, exceto em casos muito específicos, há menos impedimentos para a inseminação artificial em mulheres solteiras aqui do que nos Estados Unidos ou na Europa. Na Grã-Bretanha, onde metade das pacientes que procuram as clínicas de reprodução assistida são mulheres de classe média, de 33 a 40 anos, querendo ser mães sem um companheiro, um estudo de 2002 revela que apenas 36% das clínicas do país aceitam fazer o tratamento e parte delas, apenas com a aprovação de um comitê de ética.
Nos Estados Unidos, queixas de comportamentos semelhantes por parte de algumas clínicas levaram a Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva a publicar um documento em que exorta todos os médicos do país a não discriminar nenhum paciente que procura tratamento de infertilidade – mulheres solteiras incluídas.
No Brasil, não há nada na resolução do Conselho Federal de Medicina que impeça uma mulher de se submeter a uma inseminação artificial com esperma doado. O código civil tampouco impede que a criança seja registrada com o nome da mãe, apenas. A única restrição que a mulher decidida a ter um filho sozinha enfrenta no país diz respeito à escolha do doador. Como a comercialização de tecidos é proibida, a gama de escolha não é grande, e se restringe às amostras disponíveis nos poucos bancos de sêmen do país.
Mais: como a doação de gametas no Brasil é necessariamente anônima, a mulher que optar pelo esperma doado terá acesso a um mínimo de informações sobre o doador: nada além de algumas características físicas (cor de pele, olhos e cabelos, peso, altura), origem e profissão. Comparativamente, nos bancos de sêmen dos Estados Unidos, onde a comercialização de esperma é permitida e um negócio altamente organizado, é possível pesquisar doadores on-line por raça, altura, peso, cor e textura do cabelo, religião, tipo sanguíneo, tom de pele, cor do olho, etnia, ocupação e escolaridade, entre muitos outros parâmetros.
A mulher que pesquisa um doador no país ainda pode ter acesso, se quiser, a um relatório que registra as impressões da equipe do banco de sêmen sobre o homem; perfis biográficos curtos ou longos; testes psicológicos e comportamentais; fotos dele quando criança; fita de áudio que registra sua voz; e até planilhas em que é possível ler suas respostas, escritas a mão, para as perguntas mais variadas, do tipo de atividade cultural que prefere à qual foi a coisa mais engraçada que já aconteceu em sua vida.
No Brasil, assim como em muitos países, a criança que for o produto de um tratamento de infertilidade que envolva espermatozóides doados não terá qualquer direito a (ou meio de) conhecer a identidade do pai, a não ser que sua saúde esteja em risco por doença hereditária grave, por exemplo. Mesmo assim, a identidade civil do doador será preservada. A doação de gametas é, necessariamente, anônima. Se um dia ela resolver esclarecer sua ascendência um impulso que seria de se esperar de qualquer ser humano privado dessa informação, terá de lutar por esse direito na Justiça.
A ideia de garantir às crianças concebidas com métodos de reprodução assistida o direito a conhecer sua origem sustentava um projeto de lei que tramitou no Brasil em 99. O projeto 90/99 propunha mudar as regras da doação, tornando obrigatória a identificação dos doadores, que seria mantida em sigilo pelas clínicas por 25 anos. Para os críticos do projeto, a lei faria a oferta já escassa dos bancos brasileiros de sêmen desaparecer. Num país onde a comercialização de gametas é proibida, qual homem se exporia ao risco de gerar filhos que, mais tarde, poderiam exigir algo deles?
Nos Estados Unidos, onde a doação de esperma era tradicionalmente anônima, as regras do jogo começaram a mudar há pouco. Nos últimos anos, depois que mais e mais “filhos” de inseminação artificial e outros métodos de reprodução assistida foram à Justiça exigir o direito de conhecer seus pais biológicos, os bancos de esperma decidiram criar uma nova categoria de doador: o doador “aberto”. A iniciativa foi um tremendo sucesso. A política muda conforme o banco, mas muitos oferecem doadores dispostos a ter pelo menos um encontro com a criança, assim que ela fizer 18 anos.
A possibilidade de ter filhos mesmo sem estar dentro de uma relação estável com um homem abriu uma possibilidade maravilhosa para muitas mulheres que sonhavam ser mães – e não teriam outra maneira de realizar esse sonho. A reprodução assistida, ao desenvolver técnicas razoavelmente simples e muito seguras de engravidar mulheres solteiras, sem necessidade de qualquer contato com um homem, tornaram o processo ainda mais fácil. Além disso, a idéia das famílias formadas por mulheres sozinhas e seus filhos, antes um bicho-de-sete-cabeças, é cada vez mais aceita socialmente.
Ainda assim, é preciso não subestimar as dificuldades envolvidas na escolha da produção “independente”. Segundo muitos estudos, a maioria das mulheres que optam por ela prefeririam ter tido filhos com um homem que amassem. Os custos financeiros e psicológicos da maternidade independente são altos, assim como as responsabilidades envolvidas. Finalmente, mas não menos importante, trata-se de assumir, sozinha, o ônus de um trabalho que pode ser extenuante mesmo para os casais que o compartilham.
Optar por ter filhos sozinha não é uma decisão fácil. O peso de assumir integralmente a responsabilidade emocional e financeira por uma criança, num vínculo que se prolonga para a vida – e além dela–, não deve ser desconsiderado. Para tomar uma decisão que possa sustentar, a mulher precisa ter uma perspectiva realista do que será atravessar o tratamento de reprodução assistida, os altos e baixos da gestação e os anos de dependência do filho sem um companheiro para quem a criança signifique o mesmo que significa para ela.
O custo psicológico da escolha também é alto. Para a maioria das mulheres, optar pela “produção independente” implica em abdicar do sonho caro, cultivado por uma vida, da “família perfeita”, o que quase nunca pode ser feito sem dor. Nossa cultura enfatiza o casamento heterossexual, a família, o pai e a mãe. Será preciso se haver com a fantasia não realizada de ter um filho com um homem que ela ame e lidar com o medo de, com isso, reduzir suas chances de estabelecer uma relação duradoura mais tarde.
Como qualquer escolha que altera a vida, a opção pela maternidade “independente” requer uma consideração longa e cuidadosa, que lide tanto com as fantasias românticas das quais a mulher está abrindo mão quanto com as durezas reais implicadas no compromisso que está se dispondo a assumir. Uma decisão amadurecida, precedida por uma reflexão profunda, será mais fácil de ser sustentada.
Para as mulheres que estão contemplando a decisão de ter filhos sozinhas, o aconselhamento psicológico é fundamental. Mas você pode começar fazendo a si mesma algumas perguntas-chave. Embora não seja preciso (ou possível) resolver todas estas questões de antemão, é importante saber que elas existem, e começar a refletir sobre elas. Antes de decidir ter um filho sozinha, pergunte-se se:
Você quer ter um filho porque deseja ser mãe ou para se compensar de alguma decepção amorosa? Se você tem mágoas em relação aos homens e/ou a sensação de que nunca vai ter um relacionamento amoroso, é importante lidar com estas emoções e fantasias antes de decidir ter um filho sozinha. Primeiro, porque a falta de um homem é o motivo errado para optar por um filho. E, depois, porque você pode dar à criança uma visão ressentida dos homens e uma valoração negativa das relações entre homem e mulher. Para fazer uma escolha sustentável, é importante que você se sinta em paz em relação ao amor e aos homens, ainda que não haja nenhum em sua vida.
Você está tendo um bebê sozinha porque realmente quer ou porque precisa de algo para preencher o vazio de sua vida? Esse é um motivo fútil para optar pela maternidade “independente”, um compromisso sério, que exige sacrifícios e se estende pela vida. Viajar, conhecer gente, fazer um curso, passar um tempo em outro país são todas alternativas melhores (e de duração mais curta) para quem busca preenchimento. Ninguém é obrigado ter filhos.
Você conhece as mudanças físicas e emocionais que a esperam durante a gravidez e depois do nascimento? Para fazer uma decisão realista, a mulher precisa estar consciente de que a gravidez é um período de instabilidade emocional. Também precisa levar em conta que não será sempre que terá a seu lado alguém que a conforte durante as mudanças hormonais e de humor da gestação e as frustrações do tratamento de reprodução.
Você pode contar com uma rede de apoio segura? Para a mulher que tem filhos sozinha, amigos, amigas, parentes e até vizinhos próximos, mais do que alento, são uma necessidade. Perto do parto e nos primeiros meses do bebê, sobretudo, você precisará contar com pessoas que possam acolhê-la, estar disponíveis para serem acordados no meio da noite e levá-la ao hospital, ajudá-la na organização das compras e da casa na volta do bebê etc. Não se iluda: na gestação e nos primeiros anos do bebê, você precisará de uma família estendida, e não de colegas de trabalho ou relações meramente sociais.
Você tem uma perspectiva realista do quanto gastará com tratamento de infertilidade, pré-natal, parto, quarto do bebê, roupas, babá? Além de poder dar conta de tudo isso sozinha, você ainda precisa pensar em criar uma provisão legal da qual a criança possa desfrutar caso você falte.
Como você vai explicar sua escolha à criança? Para a criança que cresce sem um pai e em uma família não-convencional, é muito importante que a mãe possa oferecer uma atitude positiva e afirmativa da situação. A sensação de que falta alguém em sua vida não virá da criança, mas pode chegar a ela pela própria mãe, se esta se sentir abandonada, magoada ou injustiçada. Em outras palavras, se ela se colocar na posição de vítima das circunstâncias de sua via.
“Ou era assim, ou minhas filhas não nasciam”.
Ter filhos sozinha não é um bicho de sete cabeças, mas tampouco uma decisão fácil, diz M.M., que teve duas filhas com esperma de doadores anônimos
“Sempre gostei de criança, mas isso nunca foi um grande assunto para mim. Eu achava que ia ter filhos mas, se perguntassem se queria, não sabia dizer. Na verdade, minha história começa antes: perdi as trompas com 25 anos, por causa de uma apendicite. E soube, desde aí, que a possibilidade de ter filho de forma natural era muito remota. Teria de ser realmente por fertilização in vitro. Na época, isso não era uma coisa comum, como hoje. Para mim foi bem difícil. Mas, por causa do meu trabalho, eu já tinha visto até implante de embrião, tinha um entendimento biológico bom da coisa.
Foi anos depois, quando meu irmão, minha irmã e minha grande amiga tiveram filhos, que eu disse: “Agora eu vou ter filho.” Não era mais uma coisa distante, não era uma decisão em cima de uma fantasia, de um filme americano. A fantasia se tornou realidade e eu vi o que era ter filhos. O convívio com as crianças me deu força para resolver.
Lembro do dia em que decidi. Eu tinha 40 anos e estava na África com uma amiga. Eu não estava casada e não tinha essa vontade. Sempre fui muito dona do meu nariz. Fazia o que queria, morei anos fora. Eu até namorava uma pessoa de quem eu gosto muito. Mas não achava que ele fosse um marido. Aí, eu abri o leque. Decidir como eu ia ter filhos foi a parte mais demorada.
As opções eram várias: adoção legal; adoção à brasileira, ou seja, por baixo do pano; um amigo americano, gay, que se dispôs a ter filho comigo; e bancos de esperma. Fui a um médico ver como as coisas estavam, conversei com especialistas em adoção e passei uma semana com meu amigo. Também comecei a pesquisar bancos de esperma nos Estados Unidos pela Internet. Os brasileiros são restritos, já que não há venda de esperma, e os americanos me inspiravam mais segurança: eles só começam a comercializar o esperma de um doador seis meses depois de ele ter tido um exame anti-HIV negativo.
Descartei primeiro o meu amigo, porque achei que eu não teria governabilidade sobre o que poderia acontecer. Em princípio, ele seria apenas um doador. Mas e se ele resolvesse ser mesmo o pai da criança? E se ela quisesse saber quem é o pai? Eu não vou contar quem é? E se ela resolve bater na porta dele? E se ele a rejeita? E se acontece alguma coisa comigo? Eram muitas perguntas sem resposta, então descartei o amigo.
A adoção legal de fato era muito burocrática, muito demorada; já na adoção por baixo dos panos, haveria os mesmos problemas de ter filho com o amigo. Enquanto eu pensava em tudo isso, na análise eu ia olhando para a questão do pai, qual é o papel do pai para mim, na minha família. Sou judia e, para nós, a figura do pai é muito forte, presente.
Acabei concluindo que a doação seria o mais honesto. Porque, mesmo que houvesse um pai – no caso da adoção ou do amigo –, seria um pai ausente. Para você ter filho do jeito que eu tive, você tem que saber que é sozinho e acabou. Não tinha que ter lugar pra elas procurarem. Conversando com meu terapeuta e com as pessoas em quem acredito, concluí que, se era esse o jeito que eu tinha para ter filho, era esse o jeito que eu ia ter.
Claro que, se eu pudesse ter tido filho com alguém que eu gostasse, e mais cedo, eu teria preferido. É duro passar por um processo de reprodução assistida sozinha. Quando não dá certo, você chora sozinha. E se era duro para mim pensar em tudo isso, eu imaginava o quanto ia ser duro para as minhas filhas não ter pai. Mas ou era assim ou elas não nasciam.
Antes de decidir, fiz meu próprio advogado do diabo: pensei em tudo o que poderia dar errado. E se a criança nascesse com problema? E se eu faltasse, para quem ia deixar? Pedi muito pouco conselho. Ninguém sabia, meus amigos, ninguém. Contei para a minha família. Meu pai só me disse: “Tenha filhos”. Não perguntou nada, nem minha mãe. Esse apoio da minha família foi uma das coisas que mais pesaram na minha decisão.
Eu esperaria mais tempo para encontrar alguém, mas será que eu ia encontrar? Decidi. Comecei a procurar doadores em bancos de esperma. Quando vi, estava escolhendo um cara porque ele gostava do musical Cats. Aí, me dei conta de que estava enlouquecendo. Que importância tinha o cara gostar de Cats? Estava escolhendo um pai, e não um marido. Optei por um homem alto (porque minha família é alta) e descendente de irlandeses, porque gosto da Irlanda. Comprei o esperma pela Internet, com cartão de crédito. Chegou por Federal Express, num tonel.
Fiz fertilização in vitro, por causa da obstrução nas trompas. Os ovários foram estimulados, implantei cinco embriões. Na minha primeira filha, engravidei na primeira tentativa. Queria que fossem gêmeos. Quando soube que era uma criança só, fiquei maluca: “Essa menina não pode ficar com essa história sozinha.” Tive certeza de que teria outro filho.
Tive uma gravidez difícil. Sangrei muito, ficava na cama, chorava. Porque, além de tudo, você está grávida. Os hormônios estão uma bagunça. Tinha hora que minha irmã dormia comigo, no ultrassom ia sempre alguém comigo, minha mãe, meus irmãos. Quando o bebê estava para nascer, morei um mês na casa da minha irmã. Eu morava sozinha, tinha uma moça que trabalhava na minha casa e que ia embora à tarde. Eu teria tido filhos mesmo que não tivesse essa superestrutura familiar, mas que é muito bacana ter isso, é.
Quando estava grávida de três meses, comecei a contar para as pessoas. Foi uma loucura. Alguns me acharam corajosíssima, outros me disseram que era um absurdo o que eu estava fazendo com a criança. Ouvi até coisas como “Quanto custou o esperma? Eu podia ter dado o meu”. No começo, é mesmo estranho: “Fulana está grávida de um banco de esperma”. Mas depois, quando eu engravidei da minha segunda filha, as pessoas já perguntavam: “Foi do mesmo doador da primeira?”
Na minha segunda filha, tentei com o sêmen do mesmo doador três vezes, mas não rolou. Tive que trocar. Agora, uma das meninas está com quatro anos, a outra com um ano e nove meses. Desde pequeninhas eu falo para elas a verdade: que eu tive elas porque quis muito, que elas não têm pai, que nem todo mundo tem pai e mãe. Conto que as pessoas são diferentes e que as famílias também. Que tem família que mora perto, família que mora longe, família que tem dois pais, família que tem duas mães. Mesmo no mundo Disney, o Pinochio só tem pai! Você vai achando um jeito de contar.
As pessoas às vezes me perguntam por que eu não menti para as minhas filhas. Eu não ia começar uma relação mentindo. Nós somos frutos da nossa história, com o pai que a gente tem ou sem o pai que a gente tem. Não ponho a culpa de nada do que acontece com elas na falta de um pai. Elas falam que não têm pai numa boa, porque eu falo numa boa com elas sobre isso.
Uma época a mais velha achou que “pai” era um nome. De repente ela virava para algum amigo meu e dizia: “Pai!” . Agora ela já está questionando mais. Ela está descobrindo, por exemplo, que a única família que só tem mãe que ela conhece é a dela. Ela estuda numa escola bacana, esclarecida, que já tem a prática da inclusão. Fui conversar com a diretora, cada vez que muda de professora eu converso, conto a história. Eu peço para elas ficarem atentas, porque sei que as crianças vão falar, muitas são cruéis.
E conto também porque acho importante as pessoas saberem que existe esse tipo de maternidade. Continuo conversando com uma psicóloga. Quando acontece alguma coisa que eu acho mais séria eu vou lá, levo as meninas. A mais velha ela já disse que tem todas as condições de se defender.
Se eu aconselharia alguém a ter filho assim? Sim, se a pessoa não tiver mais tempo. Ter filhos sozinha não é um bicho de sete cabeças, mas é uma decisão muito difícil. Tem coisas muito duras, decisões que você tem de tomar sozinha. Antes de decidir, tem que conviver com criança, para saber o trampo que é, a paciência que precisa ter. Tem que saber que é preciso renunciar a muita coisa. Eu, por exemplo, gosto muito do meu trabalho e consegui manter boa parte dele. Mas tenho motorista, babá, enfermeira. Se a pessoa não tem grana, vai ter que se dedicar integralmente à criança”.
Texto retirado do livro “Novas famílias” escrito pela Dra Silvana Chedid. Disponível em nosso site:
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